quarta-feira, 17 de maio de 2023

[Opinião] A Casa Soturna - Charles Dickens #512

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Editora: Nova Fronteira
 
N° de Páginas: 794
 
Quote:
"Os advogados misturaram tudo em tamanha confusão, que os méritos originais da causa há muito desapareceram da face da terra. Trata-se de um testamento, e dos legados de um testamento... ou era disso que se tratava antigamente. Agora nada mais resta senão custas. Estamos sempre aparecendo e desaparecendo, prestando juramento, sendo interrogados, cruzando e descruzando petições, discutindo, selando, movimentando, encaminhando, relatando e dando voltas em torno do lorde Chanceler e de todos os seus satélites, e todos por igual valsando em torno das custas, até ficarmos reduzidos ao pó da morte. Essa é a grande questão. Tudo mais, em virtude de certos meios extraordinários, se esvaneceu. Sim, era a respeito de um testamento, quando ainda era a respeito de alguma coisa. Certo Jarndyce, numa maldita hora, conseguiu fazer grande fortuna e fez também um grande testamento. No discutir-se como os legados do tal testamento deveriam ser administrados, a fortuna deixada pelo testamento  foi-se dissipando; os legatários constituídos pelo testamento estão reduzidos a tão miserável condição que estariam suficientemente punidos se tivessem cometido o enorme crime  de receber uma herança, e o próprio testamento se tornou letra morta. De um extremo a outro da deplorável causa, todos precisam ter cópias sobre cópias de tudo que se tem acumulado em torno dela, capazes de encher uma carroça de autos(ou deve pagá-las sem possuí-las, o que é usual, pois ninguém as quer); e tem de entrar e sair de tanta coisa, em meio de tão infernal contradança de custas, honorários, asneiras e corrupção, como nunca foi sonhada nas mais horrendas visões do Sabá das Bruxas. A Justiça faz perguntas  à Lei; em troca, a Lei faz perguntas à Justiça; e a Lei acha que não se pode fazer isso, a Justiça acha que não se pode fazer aquilo; qualquer delas só sabe dizer que não se pode fazer nada sem o solicitador tal informar, e o advogado tal comparecer representando A, e o solicitador  tal informar, e o advogado tal comparecer em nome de B, e assim por diante, pelo alfabeto inteiro, como na história da Torta de Maçãs. E dessa forma, durante anos e anos, durante vidas e vidas, tudo continua, constantemente começando e recomeçando, sem que coisa alguma tenha fim. E não podemos sair do processo de forma nenhuma, porque nos fizeram parte dele, e temos de ser parte dele, quer gostemos, quer não."

 
Opinião: 
  Pelo "pequeno" trecho que destaquei acima você pode ter uma ideia do intrincado plano de fundo dessa história. Apesar do livro ser muito mais do que o eterno processo judicial Jarndyce e Jarndyce todas as personagens estão, de alguma forma, envolvidas e tendo suas vidas afetadas pelo tal processo, e são muitas personagens, uma quantidade ridícula de personagens, eu não contei nem fiz lista, mas indico ( a parte de fazer lista) mas já vi gente dizendo que passa de cem personagens, e eu acredito.
  Enfim, começamos vendo um pouquinho, muito pouco mesmo, sobre o tal do processo antes de sermos apresentados a nossa protagonista, uma garotinha chamada Ester, órfã criada pela sua madrinha uma mulher... amarga... e que nada tem a ver com o tal do processo, pelo menos é nisso que vamos acreditar por boa parte do livro. Com a morte da dita madrinha depois de falar com todo o carinho para Ester que ela e sua mãe são a desgraça uma da outra Ester é levada para receber educação e depois passa o tempo na casa de uma mulher que conhecemos com sra. Jelleby, essa mulher vive em função de escrever cartas, fazer petições e uma burocracia sem fim para, segundo ela, ajudar a África, mas não faz nada de concreto, inclusive fica tão presa nessa neura, teoricamente humanitária, que nada mais importa, nem sua infeliz família nem as crianças das quais, supostamente cuida, nem a sua casa que é um verdadeiro chiqueiro mantido em pé por infinitas gambiarras.
  Para a sorte de Ester ela não fica muito tempo morando nessa... er... casa, apesar de voltar lá em outros momentos no futuro, ela é levada para conhecer seu tutor, o cara que por alguma razão desconhecida a tirou da casa onde morava e a deu educação e sustendo, João Jarndyce. Acho que é um bom momento para reclamar das escolhas do tradutor, além de ter feito o bom humor do autor quase desaparecer por completo da obra essa ideia de traduzir os nomes das personagens causa muita estranheza, ainda mais com os sobrenomes peculiares que eles possuem.
  João Jarndyce é o único Jarndyce que vamos conhecer no livro, ele então denomina Ester como a dama de companhia de uma prima sua que também está sob seus cuidados, Ada, além dela um outro primo também vai morar na casa de João Jarndyce, a tal Casa Soturna do título, inclusive, esse chama-se Ricardo, e logo ele e Ada se apaixonam. Ester fica muito amiga de Ada e por ser extremamente responsável logo vira uma espécie de governanta da casa também.
  A Casa Soturna também é frequentada com frequência por um cara extremamente irresponsável, tratado como uma criança em corpo de adulto por João Jarndyce que vive atolado em dívidas que outros precisam pagar porque ele nunca aprendeu a lidar com dinheiro, e nunca fez questão, esse cara acaba tendo certa influência sobre Ricardo, que não demonstra muito interesse em trabalhar pois, na cabeça dele, o eterno processo que está se arrastando e ficando mais complicado por gerações vai magicamente se resolver e ele será um homem rico que não precisará trabalhar.
  Tudo isso vemos através da narração da própria Ester, ainda temos um outro narrador em terceira pessoa, que não é um narrador personagem, mas vai passear por todos os outros vários núcleos de personagens e deixar pistas de como todas essas histórias, uma mais bizarra e intrincada que a outra vão se cruzar e amarrar todas as pontas.
  Uma outra personagem que vale a pena falar, além de Lady Deadlock, que é importante pra caramba mas vá ler o livro pra saber dela, é uma senhorinha que vai todos os dias ao tribunal para acompanhar o eterno processo, ela é hilária (ou foi feita pra ser, já que a tradução mascara toda e qualquer comédia) e tem diversas gaiolas com pássaros em casa que comprou para libertá-los quando o processo finalmente for concluído, mas o que acontece é que os pássaros morrem de velhice e ela precisa comprar novos, já que o processo é eterno.
  Se fosse pra definir o livro com apenas uma palavra eu diria desafiador, ele não é uma leitura rápida, li ele em pouco mais de dois meses, mas já tinha lido cerca de metade dele ao longo de anos, mas precisei retornar ao início. Muito disso atribuo a tradução, com certeza se tivéssemos uma nova tradução esse seria um livro muito mais divertido e tranquilo de se ler. Apesar de que é consenso de que este não é um livro tão engraçado como os demais do autor, mas ele tem seus momentos.
  A mensagem principal do livro, quem sou eu pra definir, né? Mas eu diria que é mais ou menos o que vemos em O Deserto dos Tártaros, ficar com a vida estagnada esperando algo que, talvez e muito provavelmente nunca chegue... mas o livro vai muito além disso, cada um dos zilhões de personagens tem seus próprios dramas com suas próprias resoluções. É um novelão delicioso, desafiador, longo, lento, mas maravilhoso. Não recomendo como uma porta de entrada na obra do autor, mas se você já conhece ele, muito provavelmente você já adora, então vai pra essa leitura sem medo de ser feliz, sem pressa e degustando. Acho que é um dos livros que mais me orgulho de poder dizer que li.




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