domingo, 21 de setembro de 2025

Meu Nome é Vermelho

 Este mês minhas leituras não estão lentas, estão estacionadas, com os quatro pneus furados, o estepe roubado, sem combustível e no meio do absoluto nada, longe de qualquer civilização...

  Terminei dois livro, um deles ainda meio na marra, algo que o livro não merecia, gostei bastante, mas essa não é uma postagem pra falar sobre ele, exatamente, ainda vou fazer uma com este intuito, mas como não estou lendo preciso preencher a agenda desse blog com alguma coisa, então resolvi trazer aqui um gostinho do primeiro livro finalizado em setembro... um livro com vários narradores, dentre eles uma cor... e gostei muito da forma da cor narrar, então trouxe aqui o primeiro parágrafo que a cor narra:

"Eu estava em Ghazna, no cafetã do poeta Firdusi, autor do Livro dos reis, quando ele completou com a mais intrincada das rimas um epigrama de que tinham lhe dado os primeiros versos, calando assim a boca dos poetas da corte do xá Mahmud, que haviam debochado dele chamando-o de rústico; eu estava na aljava de Rustam, o valente herói do Livro dos reis, quando ele segue as pegadas do seu cavalo perdido até as terras mais distantes; torneime o sangue que esguicha do célebre demônio branco, quando Rustam o racha no meio com sua espada maravilhosa; e estava nas dobras dos lençóis entre os quais ele faz furiosamente amor com a filha do seu anfitrião, o rei de Turã. Sim, eu estava e estou em toda parte, sempre. Apareço quando Tur, o traidor, decapita seu irmão Iradj; quando os exércitos lendários, como num sonho, se enfrentam nas estepes; e no sangue que escorre cintilante do belo nariz de Alexandre, quando ele adoece de insolação. E quando xá Bahram, o rei-onagro sassânida que dormia cada noite da semana com uma das suas concubinas, ouvindo as histórias que elas contavam, num dos seus sete palácios pintados de cada uma das sete cores, visita a beldade das terçasfeiras, por cujo retrato se apaixonara, lá estou nos trajes da bela, assim como apareço na coroa e no cafetã de Khosrow, que se apaixonara pelo retrato de Shirin; e nos estandartes dos exércitos que sitiam uma praça-forte; nas toalhas que cobrem as mesas dos banquetes, nos cafetãs de brocado, quando os embaixadores vêm beijar os pés dos nossos sultões, e onde quer que a espada, para alegria das crianças, irrompe no meio de uma história. Sim, estou no pincel dos formosos aprendizes de olhos amendoados, que me passam, admirando-me, no grosso papel do Hindustão e de Bukhara; embelezo os tapetes indianos, a ornamentação das paredes, as túnicas das moças que se debruçam em suas sacadas sobre o espetáculo da rua, a crista dos galos bravios, as romãs e as frutas de países fabulosos, a boca de Satanás, os finos galões em torno das miniaturas, os motivos entrelaçados dos panos bordados das tendas, o emaranhado de flores minúsculas, apenas visíveis, em que o iluminador se deleitou, os olhos de cereja confeitada dos passarinhos de açúcar; e as perneiras dos pastores, as auroras narradas nas lendas, os ferimentos e os milhares, as dezenas de milhares de corpos de guerreiros, de namorados e de soberanos. Gosto de florir com flores de sangue a cena dos campos de batalha; aparecer no cafetã de um grande poeta quando ele sai, em companhia de poetas e de belos efebos, para um passeio no campo, onde cantarão e tomarão vinho; nas asas dos anjos, nos lábios das mulheres, nas chagas dos cadáveres e nas cabeças cortadas. 
  Ouço a pergunta de vocês: o que é uma cor? 
  A cor é o toque do olho, a música do surdo, a palavra que vem das trevas. Como tenho ouvido há dezenas de milhares de anos as almas sussurrarem, como o vento nas noites de tempestade, de livro em livro, de objeto em objeto, posso lhes dizer que meu toque se parece com o toque dos anjos. Uma parte minha, a parte séria, mobiliza a vossa visão, enquanto a parte brincalhona voa nas alturas, seguida por vossos olhares. 
  Que sorte tenho de ser o Vermelho! Sou o fogo, sou a força! Todos me notam e me admiram, e ninguém resiste a mim. 
  Devo ser franco: para mim, o refinamento não se esconde na fraqueza nem na sutileza, mas reside na firmeza e na determinação. Eu me exponho, pois, aos olhares. Não tenho medo nem das cores nem das sombras; menos ainda da multidão ou da solidão. Que prazer tenho ao pegar uma superfície oferecida ao meu ardente triunfo: eu a encho, expando-me nela; os corações se embalam, o desejo aumenta, os olhos se arregalam e todos os olhares brilham! Olhem para mim: é bom viver! Vejam como é bom ver! Viver é ver. Podem me ver em toda parte, creiam: a vida começa e se acaba sempre comigo. 
  Mas silêncio! Ouçam o relato do meu maravilhoso nascimento, a origem do escarlate! Um mestre miniaturista, perito em pigmentos, esmagou bem miúdo com seu pilão, num almofariz, cochonilhas importadas de longínquas e tórridas paragens do Hindustão. Para cinco dracmas desse pó vermelho, preparou um dracma de saponária e meio — só meio! — de aventurina. Ferveu a saponária num pote com três okkas de água, depois dissolveu no líquido a aventurina. Deixou fervendo o tempo de tomar um bom café e enquanto o saboreava, eu me impacientava, como um bebê que vai vir à luz! O café clareou-lhe a mente, seus olhos cintilavam como os de um djim. Ele derramou então na panela o fino pó de cochonilha, mexendo regularmente com um pauzinho reservado para esse fim. Eu ia me tornar o autêntico vermelho-carmim, mas faltava-me ainda uma boa consistência, e a mistura não devia ferver nem de mais, nem de menos. Com a ponta do pauzinho, pôs uma gota na unha do polegar — qualquer outro dedo seria absolutamente inaceitável. Que êxtase ser o Vermelho! Pintei graciosamente sua unha, sem nenhum escorrido: a consistência estava perfeita, mas ainda restavam sedimentos. Ele tirou a panela do fogo e passou o conteúdo num pano bem fino e bem limpo para me purificar mais ainda. Levou-me novamente ao fogo para ferver mais duas vezes, depois acrescentou uma pitada de alúmen, antes de me pôr para esfriar. 
  Passaram-se alguns dias, e eu continuava descansando no fundo da panela, sem ser misturado a nada mais. Ora, eu estava ansioso para que me passassem em cada canto de página, em tudo e em toda parte. Ficar quieto assim doía no meu coração e no meu espírito. Foi durante esse período de profundo silêncio que meditei sobre o significado de ser vermelho. 
  Uma vez, na Ásia Central, quando um belo aprendiz me passava com seu pincel na sela de um cavalo que um velho pintor cego desenhara de memória, surpreendi a animada discussão que dois pintores, também cegos, travavam a meu respeito: 
  “Embora, após toda uma vida de trabalho ardorosamente devotada a nossa arte, estejamos privados do sentido da visão, nós conhecemos o vermelho e lembramos que tipo de cor e de sentimento ele é”, dizia o que havia desenhado o cavalo na folha de papel. “E se tivéssemos nascido cegos? Como teríamos podido compreender esse vermelho que nosso formoso aprendiz está usando?” 
  “Belo tema”, disse o outro, “mas não se esqueça que as cores não são para ser compreendidas, e sim sentidas.” 
  “Caro mestre, procure então explicar o vermelho a quem nunca conheceu o vermelho.” 
  “Se o tocarmos com a ponta dos dedos, sentiremos algo entre o cobre e o ferro. Se o puséssemos na palma da mão, ele queimaria. Se o provássemos, teria um gosto encorpado, como charque salgado. Se o colocássemos entre nossos lábios, ele encheria nossa boca. Se o cheirássemos, teria um cheiro de cavalo. Se fosse uma flor, teria um aroma que lembraria muito mais a margarida do que a rosa.” 
  Na época (cem anos atrás), a pintura dos europeus ainda não era uma verdadeira ameaça, salvo algum capricho excepcional e passageiro de um dos nossos sultões, e nossos mestres lendários acreditavam em seus métodos tão fervorosamente quanto em Alá, considerando um desrespeito e uma vulgaridade o uso idiota que aqueles bárbaros faziam das nuances de diversos vermelhos nas carnes e nos ferimentos à espada, e até num simples saco de pano, em suas pinturas de infiéis. Só mesmo um bárbaro medroso, fraco e volúvel podia reunir vários vermelhos num manto vermelho, diziam eles. E as sombras, acrescentavam, não passam de péssima desculpa. De resto, só acreditávamos num único vermelho. 
  “Qual o significado do vermelho?”, voltou a perguntar o pintor cego que havia desenhado o cavalo. 
  “O significado da cor é que ela está diante de nós e nós a vemos”, respondeu o outro. “O vermelho não pode ser explicado a quem não vê.” 
  “Para negar a existência de Alá, as vítimas de Satanás sustentam que Alá não é visível para nós”, replicou o miniaturista cego que havia desenhado o cavalo. 
  “Mas ele aparece para os que podem ver”, disse o outro mestre. “É por isso que o Corão diz que os cegos e os videntes não são iguais.” 
  Enquanto isso, o aprendiz tinha me aplicado suavemente nas complicadas volutas da manta do cavalo. Que maravilhosa sensação fixar minha plenitude, minha força e meu vigor no negro e no branco de uma ilustração bem-feita! O belo mancebo me espalhava pela página à minha espera, e seu pincel de pêlo de gato me fazia deliciosas cócegas. Transmitir minha cor à pintura era como se eu ordenasse: “Faça-se o mundo!”. E o mundo nascesse das minhas entranhas. Sim, os cegos me renegarão, mas a verdade é que estou em toda parte."
  

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