Se tratando de um sábado preguiçoso, não sentiu vontade de cozinhar... até porque nem havia feito compras para a casa naquele mês, afinal, dezembro tem muita confraternização para ir e não precisar cozinhar, mas nenhuma para almoçar naquele sábado, então resolveu sair de sua casa, nos limites do perímetro urbano, e ir até o centro almoçar, depois de almoçar resolveu abrir mão de seu sagrado cochilo vespertino e vagou um pouco pelo centro da pequena cidade, assim não precisaria voltar para casa e enfrentar novamente a vontade de ali permanecer para ir, enfim, ao barbeiro.
Cidade pequena, sábado a tarde, mesmo no fim de ano, boa parte do comércio estava fechado, por sorte a intenção não era andar pelo comércio ou fazer compras, ele odiava fazer compras. Havia levado o livro que estava lendo no momento, um deles, no caso, já que há muitos anos não se atinha a uma única leitura por vez, sempre lendo, pelo menos, cinco livros diferentes ao mesmo tempo, alternando de um pra outro conforme seu interesse no momento.
Pensou em se dirigir ao lago da cidade, sentar próximo de uma margem e ficar lendo ali, até próximo da hora marcada para a sua tosa, mas como estava insuportavelmente calor, só imaginou a quantidade de borrachudos que o esgotariam antes de terminar um capítulo que fosse. Sem muitas opções viáveis e suficientemente solitárias, resolveu já ir até a barbearia e ficar lendo lá, até que chegasse sua vez, e assim fez.
A barbearia tinha uma ala de espera bastante convidativa, ao entrar ele disse à balconista/atendente que estava bastante adiantado para o horário dele, mas esperaria por ali mesmo. A funcionária disse para ficar à vontade e ofereceu bebidas, que ele educadamente recusou, foi até o final do balcão (onde supôs que ficavam as pessoas que aceitavam as tais bebidas) sentou numa cadeira, recostou-se na parede e abriu seu livro.
Já fazia um bom tempo que vinha lendo este, embora ainda estivesse longe da metade da história, é de um autor inglês, não muito conhecido (os melhores raramente são) com premissas bem inventivas e intrigantes. Ele já havia lido uma coletânea de histórias curtas e ficado tão maravilhado que já havia ido atrás e conseguido todos os outros livros do autor que haviam sido traduzidos, mas este ainda era o segundo que lia, o primeiro romance. O livro acompanhava uma senhora desagradável, daquele tipo de personagem que você ama, mas que odiaria ter que conviver, alternando entre seus últimos momentos de vida e seu início no pós vida... mas é um pós vida diferente de tudo que se imagina, não tem nada a ver com conceitos cristãos ou espíritas (que aqui alguns dirão serem iguais, embora não sejam).
Ele aproveitava a leitura, com a música de fundo da barbearia em volume baixo, sem incomodá-lo, e com mais ninguém na área reservada para espera... infelizmente não durou muito. Logo apareceu uma mulher que parecia amiga da funcionária (balconista/atendente/caixa) e elas logo engataram uma conversa animada e em um volume desnecessariamente alto. Ele não tinha dificuldade para se concentrar na leitura e ignorar todos os sons ao redor, normalmente... recentemente ele havia passado por um momento de estafa mental, resultado do trabalho, do convívio, do declínio moral da humanidade, da percepção de finitude e da desesperança com o país, pra não falar com o mundo... isso prejudicou bastante seu hábito de leitura, que estava retomando aos poucos, mas bem longe do que costumava ser, incluindo sua capacidade de concentração.
Ele revirou os olhos um pouco e focou no livro, a protagonista estava narrando seus últimos dias de vida, depois que uma de suas filhas a tirou do hospital para cuidar dela em casa... ou para que morresse no conforto de casa ao invés do ambiente estéril e impessoal do hospital... era nisso que o leitor queria acreditar, mesmo com a apresentação que teve das filhas (uma controladora e outra drogada e incapaz) que havia lido da última vez que pegou aquele livro, ainda antes do seu pequeno colapso mental. A protagonista estava fraca, magra e com dores, enquanto Gustavo, o amigo em comum da funcionária da barbearia e da cliente (o que ela estava fazendo ali? Eles não atendiam mulheres) tinha vomitado no colo da Amanda na festa da noite anterior (ah, claro, estava bebendo e fofocando), o que era um enorme vexame, ele precisou ser levado pra casa às pressas pra que os amigos da Amanda não começassem uma briga por causa do descaso dele com a... er... dama...
No livro a protagonista ouvia a filha conversar com uma cuidadora, provando que a ideia de tirar a mãe do hospital para ter um cuidado dedicado de uma filha que a amava era só ilusão do leitor, enquanto chegam mais duas mulheres e um homem na barbearia, acrescentando suas vozes à cacofonia de risadas e assuntos humilhantes para eles e para os protagonistas dos casos narrados. Não bastasse o escândalo, eles se sentam irritantemente próximos ao leitor, que vê sua adorável protagonista assistir a entrada triunfante da filha e da nova cuidadora/enfermeira em seu quarto conversando sobre o que farão com ela, enquanto ainda está viva. Os assuntos da manada de hienas, como o leitor passou a chamá-los mentalmente, prosseguiam em rápida sucessão, todos eles poderiam ser tema de algum ensaio sobre a decadência e imoralidade humana.
A filha e cuidadora falavam sem parar e ignoravam a existência da matriarca que pensava, com certo desalento, "elas falam como se eu nem estivesse presente" e neste momento o leitor se sentiu extremamente ligado àquela personagem, pois a cacofonia de gritos, risadas e fofocas que causavam vergonha alheia não cessavam e ignoravam totalmente a existência dele, que estava ali, provavelmente recebendo gotículas de saliva do bando de hienas de tão perto que estava.
Mas ele admirava como conseguiam manter uma conversa com tamanha fluidez, sem nenhum assunto minimamente construtivo ou que, pelo menos, não denegrisse terceiros que não estavam ali para se defenderem... Ele começou a pensar se suas conversas são, realmente tão diferentes assim das que ele ouvia do bando de hienas, tinha certeza que eram menos vexatórias, mas talvez não muito mais nobres. Pensava em como era fácil conhecer detalhes que deveriam ser íntimos, de pessoas que ele nem sequer conhecia, simplesmente ouvindo de trás de um livro, onde estava melhor escondido do que no cômodo vizinho. Pensou em abraçar a velha senhora que estava morrendo no livro, pensou em chegar em casa e escrever tudo isso... então o chamaram, era a sua vez de ser atendido.


Gostei. Eis aí um contista entre nós😊
ResponderExcluirMuito bom, Rudi! Queria continuar lendo!
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